Curso de enfermagem
Eu já sei que o sonho de muita gente é fazer um curso
profissionalizante no exterior. Quase foi o meu também, só que não foi! Os
desafios enfrentados foram muitos, não somente no idioma, como também quanto
aos professores, o horário e principalmente meus colegas de sala de aula.
Paguei não somente meus pecados, como os pecados da família inteira. Quando
morrermos, subiremos direto ao paraíso de Gzuis e saltitaremos entre nuvens,
nadaremos com casais de cisnes, chuparemos uvas e pitangas, faremos amor com
passarinhos, amaremos uma alma mais que outra... sem dívidas terrenas a pagar.
Primeiro de muitos aspectos: o curso de enfermagem na
Alemanha não é universitário, e também não é o técnico que fiz no Brasil. Ele
fica entre uma coisa e outra, e ao mesmo tempo entre nenhuma. Na verdade,
apesar das exigências e longa duração, se eu voltasse ao Brasil com esse
diploma, não teria mais que um certificado de auxiliar de enfermagem em mãos. Embora
não seja superior, o curso de Enfermagem alemão exige dos alunos 2.100 horas
teóricas e mais 2.500 horas práticas, ou seja: 4600 horas no total; dura três
anos, só que para dar conta de tantas horas em um prazo relativamente tão curto (ou quer dizer, não tão longo para
toda essa cacetada de horas), o cara enquanto aprende a teoria, fica no colégio
das 8 horas da manhã às 16 horas da tarde todos os santos dias. É praticamente
um colégio interno isso, pois quando ele sai de lá o dia já está quase morto, e
quando ele chega a casa, há invariavelmente algo a estudar ou deveres a serem
feitos que o fazem mofar na mesa estudando até às 22 horas da noite. Quando o
aluno começa o período de prática no hospital (logo no terceiro mês de curso), são
8 horas de trabalho diário junto com fins de semana (ganhando nesse caso algum
dia da semana livre) durante dois meses consecutivos. Depois ele volta para o
colégio e o ciclo vai rodando mais ou menos assim: dois meses de teoria no
colégio, dois meses de prática hospital até que o número de teoria vai
diminuindo e a número hora de prática aumenta.
No Brasil, em geral, o curso de enfermagem universitário
constitui 4860 horas, realizadas em dez semestres (que podem chegar a 14,
conforme a necessidade), ou seja: o estudante universitário no Brasil tem cinco anos para fazer mais ou menos o
mesmo número de horas do curso de “auxiliar de enfermagem” de três anos na Alemanha. Sim, digo “Auxiliar de enfermagem”, pois
o enfermeiro (que não é enfermeiro aqui) não tem competência para fazer nem a
metade das técnicas de um técnico de enfermagem no Brasil. Aí eu fico me
perguntando para que tantas horas teóricas e práticas se no curso daqui o cara
não aprende muito mais que fazer camas, limpar bundas e servir sopas? Tá, fui
maldosa agora! Podem me xingar! O enfermeiro na Alemanha não tem autorização
para quase nada em termos de procedimentos, pois claro, apesar das mil horas de curso, ele não aprende
técnicas mais complexas (tanto em relação a procedimentos com paciente quanto
ao manuseio de aparelhagem hospitalar). Técnicas simples como a punção de uma
veia são destinadas ao médico - ou ao enfermeiro em alguns casos - desde que
esse tenha capacitação para tanto - ou seja, um curso de especialização que ele
faz após o curso de enfermagem (que não é enfermagem).
A enfermagem na Alemanha se concentra no cuidado ao
paciente em suas necessidades básicas: alimentação, higiene, conforto...
Necessidades importantíssimas ao indivíduo (e ainda mais ao acamado/doente/paciente),
portanto, um serviço essencial, mas lamentavelmente não muito valorizado.
Ao tentar validar meu diploma de Técnica de enfermagem
na Alemanha para começar a trabalhar direto aqui (santa inocência) esperei
quase seis meses pelo processo burocrático. A questão é que dei entrada nos
meus papeis mais ou menos na mesma época em que os refugiados deram entrada no
país, e devido a isso, tudo por aqui ficou mais lento. Nesse meio tempo (quer
dizer, meio ano) prestei serviço voluntário em um hospital evangélico da cidade
no setor de idosos com Alzheimer. Foi nessa oportunidade, antes de começar o
curso, que já percebi as diferenças entre a enfermagem alemã e brasileira, mas
embora a surpresa (negativa), uma parte dessa experiência foi gratificante,
pois os velhinhos que conheci fizeram tudo valer a pena (tema para algum Post futuro).
Tanta espera e custos para receber um aval inesperado
e decepcionante: do meu diploma de Técnico de enfermagem o governo alemão validou
apenas algumas poucas horas, oferecendo-me a oportunidade de reduzir um dos
três anos de curso se eu resolvesse iniciá-lo aqui (mas para isso eu teria que
fazer uma prova correspondente a 800 horas de teoria, e claro, aprová-la com
louvor). Se um peido para quem já está cagado é indiferente, pensei: “Quem estuda
dois anos de curso, estuda três!”, e otimista, mandei meu currículo para o
curso de enfermagem da Cruz Vermelha.
Mas não basta apenas o cara ir lá e se matricular em
um curso, não! A partir do momento da inscrição (inscrever-se não significa que
você está dentro), eles chamam o candidato para uma entrevista, e esse deve
estar preparado para vender seu peixe, dizendo por que do interesse no curso,
quais suas qualidades e aptidões, e blá blá, blá. O meu problema pessoal é que
para aprender o básico, voltando a fazer um curso que eu já fiz e aprender um
trabalho que já trabalhei, estou demasiadamente adiantada, velha, impaciente...
Por isso que quando me candidatei à vaga no curso da CV (Cruz Vermelha) e me
apresentei na instituição no dia marcado para entrevista - com carta de
referência do hospital evangélico alemão onde prestei serviço voluntário por
seis meses, currículo completo e quarenta copias de certificados de cursos
relacionados à área de enfermagem que fiz – tudo legitimamente traduzido e
reconhecido, com acréscimo do reconhecimento e autorização do governo alemão
para eu poder estudar/trabalhar, finalizando com os cursos do curso de língua
alemã do A1 ao C1 (B2 é o nível obrigatório para começar esse curso), a senhora
que me entrevistou vendo todo o esforço, minha excelente organização (não estou
sendo exibida, juro, mas com tantos papeis, documentos, traduções, copias
autenticadas, documentos originais... a organização é de fato essencial), ficou
meio abobalhada quando viu a experiência que carrego no currículo: quanto aos
cursos que fiz (ou comecei, entre eles dois anos de Filosofia na Universidade
Federal de Rosário, Argentina), os idiomas que falo, os países onde morei, os
livros que escrevi... Aí ela me perguntou: “Puta merda, alguém com toda essa
experiência vai querer refazer um curso desde o básico para aprender o que já
sabe, e fazer no futuro a metade do que fazia no passado?” Ela ficou tão
abismada que por pouco não sai de lá correndo. O entusiasmo e admiração dela me
fez passar mal. Ela deve ter pensado que sou tantã. Quer dizer, metade de
técnicas, metade da responsabilidade, enquanto trabalho braçal representa o
dobro. “Uma mulher de 38 anos fazendo um curso junto com delinquentes de 16!”.
Isso era informação que somente ela sabia - eu só desconfiava - acreditando que
seria forte o bastante para sobreviver a isso: ter adolescentes como colegas de
sala de aula, quando na verdade não passo de uma cagalhona com uma paciência
bem delimitada.
Esqueçam às 30 horas de trabalho semanal comum ao
enfermeiro no Brasil, pois aqui às 8 horas diárias não diferem a essa classe
trabalhista. Sem dizer que quem faz o turno da manhã, entra no hospital já às 6
horas da matina, saindo de lá depois das 14. Todos os dias, inclusive finais de
semana que podem chegar a ser sábado e domingo emendando direto com a semana
que se aproxima. E quem assume o turno vespertino, sai do hospital depois das
22 horas. Hoje em dia eu prezo muito a camaradagem dos enfermeiros que faziam a
escala de trabalho no hospital onde eu trabalhava. E eu achando que a maioria
era pau no cu. Que nada! Ao menos eles se empenhavam em não sobrecarregar os
funcionários, e quando estes trabalhavam sábado não trabalhavam no domingo, e
quando trabalhavam algum dia do final de semana geralmente ganhavam a
segunda-feira livre e também o próximo final de semana. Aqui não é sacanagem
(acho que não) o povo trabalhar tanto, o pessoal do hospital está acostumado
(por lei) a fazer essas cargas de trabalho horrendas. E digo mais: tanto o
funcionário quanto o aluno de “enfermagem” trabalham as mesmas horas
semanais/mensais. E o salário médio do enfermeiro - padrão e corrente – gira em
torno dos 2.300 a 3.600 Euros. Isso em Bayer. Fonte aqui no “Gehaltsvergleich”.
Mas se você está se perguntando, puts merds, quanta
burocracia, tempo, exigências, lágrimas de sangue... para ser um mero estudante
de enfermagem (que não é da Universidade), eu explico um dos pontos (talvez o
único) mais fascinante e extraordinário aqui: Ao contrário do Brasil, onde
geralmente o estudante PAGA para
estudar um curso técnico ou universitário, na Alemanha é a instituição quem
paga para o aluno estudar. Crazy, no? Aqui o aluno RECEBE! E aí o estudante passa a ser para a instituição não somente
estudante, mas também funcionário.
Quando me aprovaram para o curso na CV, recebi
contrato de trabalho com direito a férias, décimo terceiro (aqui eles o denominam
como - Weihnachstsgeld - dinheiro de
Natal) e todo o resto que compete aos direitos e deveres de um trabalhador
comum. Salário? 1.100 Euros (bruto) mensais!
O que significa mais de 3.600 reais – no
dia de hoje, 27.02.2017 - atualizado real/Euro pelo Investing.com,
mas deduzindo impostos e tal, ficam ainda ao redor dos 800 Euros neto (para
comprar bolsas e sapatos LOL), ou seja, mais ou menos 2.600 reais na conta
todos os meses! Eu posso até não ter gostado do curso (conversa para o próximo
Post), mas tem como não gostar desse país? Poxa... Que sensacional! O aluno
(que em geral começa esse curso com 16 anos) recebe salário para estudar, e ao
final de seus esforços, sair de lá com uma profissão! Wunderbar! Com meus 16 anos eu não tinha dinheiro nem para comprar
chicletes...
O fato é que a maioria dos pré adolescentes (terminando
o que seria para nós um primeiro grau) já pode optar por um curso como esses. E
foi o que aconteceu comigo: Repetir um curso que fiz vinte anos atrás, agora
quase tiazona, no meio de colegas que ainda brincam de pegar e esconde-esconde
na hora do recreio. Arrggghhh!!!!
Ah, aqueles colegas do curso...! Que experiência inesquecível
fiz ali! Meu amor por esse país e pela humanidade foi desafiado durante esse
período...
Foi curto, mas valeu! (quer dizer, nao valeu, nao!)
A parte que segue dessa crônica será menos
informativa, porém mais engraçada (que é o que afinal interessa).
Não sai daí.
Ich
komme wieder!
Olá!
ResponderExcluirEstou assim...sprachlos contigo!
Li e vi toda a cena. Notei seu português bem delineado e amei cada fase.
Meus parabéns! Você é o tipo de brasileira que me faz ter orgulho da pátria-nem tudo está perdido.
Bom, eu como você, estou querendo fazer Ausbildung de Krankschwester. No BR fiz 5 anos de Odontologia, cheguei na trave e engravidei, parei e disse que voltaria pra finalizar os últimos 3 meses mas enfim, emendei anos depois a segunda cria.
No fim, estou 7 anos parada e agora voltando á labuta mas na duvida: Fazer Zahnmedizin do comecinho, após equivalência num semestre adiante- não sei quantos semestres vão reconhecer-; ou ir para Enfermagem?!
Estou buscando informações e seu Post me é de total valia.
Amei...conte-me mais bitte!
Oi Danny!
ExcluirSeja mais que bem-vinda por aqui! De qual cidade no Brasil vc vem e em qual está morando por aqui?
Se vc tem interesse pelo Ausbildung de enfermagem, então não podes perder a continuação desse texto dividida em + duas partes...
Que vc fez Odontologia no Brasil não me admira. Teus dentes seriam uma perfeita e gratuita propaganda para a tua profissão! Pena que chegasses taoooo longe e nao conseguisses terminar o curso. Poxa!!!
Quantos anos tu tens? Eu só te indicaria fazer esse curso (ou qualquer Ausbildung aqui na Alemanha) se ainda não estais na casa dos 30. Dá pra fazer mesmo tendo ultrapassado essa faixa de idade? Dá! Mas vais sofrer? Vais! Todos os poucos adultos que fizeram o curso comigo sairam logo depois de mim tb (e isso pq eram alemaes). Sei lá, o cara tem que ser forte psicologicamente para aguentar um treco desses (agora já estou fazendo terrorismo...)
Nova pergunta para eu poder te dar algum conselho ou dica: Vc já mandou fazer na Alemanha a equivalência do que vc estudou no Brasil? (Através de certificado de segundo grau, curso profissionalizante e disciplinas cursadas na Faculdade, td devidamente traduzido e etc.)? Se bobear, como tens todo esse tempo de curso de Odontologia, já terias autorização para poder trabalhar como auxiliar de enfermagem aqui. Mas vou parar de perguntar e fazer suposições, e deixar tu me responder....
Do contrário me excedo (aliás, já me excedi!), hehe
Olá! Achei fantástico tudo o que escreveu no post. Tenho planos de mudar para Berlim. Sou graduada em enfermagem aqui no Brasil e gostaria de saber se é possível fazer equivalência do curso, e nesse sentido, estudar apenas o que for necessário para complementar. Saberia me dizer como funciona esse trâmite. Obrigadaaaa!
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