Cara, estou eu lá no
supermercado com meu carrinho de compras, quando, de repente, sou abordada por
um total desconhecido no corredor. O cara está mal vestido; vejo que seus dentes
são amarelados, meio fodidos quando abre a boca para dizer:
— Desculpe, posso tomar sua atenção um minuto?
Putz,
pensou eu... logo comigo! Sou cagada
mesmo! Tanta gente no supermercado e esse cara vem falar logo comigo! Caralho!
Que merda, que bosta, que cocô... e vou falando para dentro, comigo mesma, em punição
por estar no lugar errado, por ter essa cara de tola, essa cara de babaca que é
sempre abordada na rua, na farmácia, no estacionamento... por estranhos. Já
faço uma cara bem feia, olho para o relógio, olho para a prateleira fingindo
analisar os componentes em uma garrafa de Ketchup, mexo no miojo que está no
carrinho, sem saber como atuar para ele desistir de querer falar comigo. O cara
começa pedindo desculpas, boa coisa não pode ser... reflito, indignada, sabendo
que vai sobrar para mim. Penso em uma desculpa para negar qualquer coisa que
ele me peça. “Desculpe, posso tomar sua atenção um minuto?” Essas palavras
ficam badalando em meu inconsciente. Quero dizer: “Não, agora não dá” “Não, não
pode!” “Desculpe, eu o conheço?”. Mas sou educada cagalhona demais para
isso, e simplesmente balanço a cabeça, sem dizer nem que sim nem que não,
mostrando que ele pode falar, mas que seja rápido.
— Eu sou catador de papel – começa – e estou procurando alguém que compre uma cesta básica para mim.
Olho no carrinho dele, e
vejo que a cesta já está ali, embora não tenha encontrado ainda seu comprador. Penso:
Que folgado! Tenho vontade de dizer: Mas
primeiro você deveria falar com a pessoa, depois pegar a cesta, e não o
contrário. Mas fico calada, julgando-o de todas as formas, certíssima de
que o cara vai pegar esse dinheiro da cesta para tomar cana no bar com outros
cachaceiros e rir da minha cara. Para me livrar dele, estou prestes a coçar o
bolso e oferecer-lhe as moedas que tenho ali (como um sinal de minha
generosidade, aceito contribuir com uma dose de pinga). Não falo nada. Meu olhar
o tortura, fico esperando que ele minta na minha cara, que me conte que perdeu
o emprego, a família, que me diga que se eu o ajudar, Deus me dará em dobro...
Fico parada, crucificando-o por ter me abordado, deixando-me sem graça, sabendo
como se me conhecesse que não consigo dizer não, que ele deve ter visto em mim
cara de granfina, babacona. Penso mais uma vez em dar-lhe umas moedas, mas o
cara é enfático:
— Sou catador de papel e moro com a minha família em um container...
Tá,
lá vem uma história triste, concluo, pensando uma vez mais: Caralho, por que eu? Permaneço em
silêncio, estou de mau humor, chateada com essa investida dentro do
supermercado.
— Estou pedindo uma cesta básica, a senhora poderia comprá-la para mim? Sei que não deveria estar aqui, talvez o segurança me coloque para fora...
Sim,
sim, sim! Torço, alucinada e olho para os lados, esperando que um
deles apareça e o tire dali.
— Eu tenho três filhos. Minha mulher, hoje de manhã, não tinha mais leite para dar ao bebê...
Já tenho vontade de
perguntar quanto é, para poupar meus ouvidos dessa história quando percebo que
o cara se cala, sem concluir.
— Tá, e aí? — Pergunto, agora querendo saber o final.— Que situação! – ele me diz. — Não ter como sustentar a própria família, escutar seu filho chorando de fome. – Eu... – tenta dizer, mas começa a chorar.
Ele luta, mas não consegue,
suas lágrimas desesperadas já estão ali, caindo na frente de uma total
desconhecida, no corredor de um supermercado.
O pranto do cara me
desespera. Penso no bebê dele chorando com a barriga vazia. Penso na mulher
dele, tão miserável quanto o próprio. Penso nessas três crianças sem nome, sem
esperança, sem futuro no país. Vejo-os na rua, no farol, pedindo dinheiro, vendendo
balinhas de goma para poder comprar pão. Penso nos vidros do carro que se
fecham para eles. Há dezoito anos ele cata papel, fico sabendo. A residência dele
é um contêiner. Endereço, não tem. Agora, quero que ele pare de chorar, quero
que não fique triste, quero que pense que amanhã tudo será diferente, mesmo sabendo
que não será. Agora paro de pensar em mim e minhas desculpas, e penso nele,
admitindo que não há lugar ao sol para todos nessa sociedade perversa que assiste
uma família morar em uma caixa, e ignora isso, fingindo que uma situação como
essa é normal e aceitável, que em um país de fodidos como o nosso, onde uns têm
tanto e outros não têm nada, tudo isso é aceitável. Não há lugar para essas
crianças, nem para o casal, e nem para seus filhos fora da caixa de plástico. O
homem da casa, do contêiner, que tem a obrigação de sustentar a família, vai
para o lugar certo: o supermercado (onde tem comida) pedir que o ajudem:
— Eu não quero dinheiro, eu não quero nada! — diz soluçando, como se soubesse o quanto havia sido julgado. — Eu quero dar de comer para minha família. Se a senhora quiser, eu espero com a cesta lá no caixa.— Tá, me espera lá então. – digo, ainda achando que ele vai desistir, e me pedir a espécie em dinheiro.
Ele agradece, tentando
manter a dignidade, limpando suas lágrimas com a mão, lutando para não chorar,
para conseguir manter a cabeça em pé, e se afasta soluçando.
Ele não é morador de rua. Não
é vagabundo. Não é desempregado. Ele é catador de papel! Diz até com um certo orgulho,
pois já trabalha nisso há muitos anos, e provavelmente, até conseguiu sustentar
a família certo tempo, antes de ela ter crescido.
Tento terminar minhas
compras, mas não consigo. O cara está lá me esperando com a cestinha básica no
carrinho, nem um pãozinho a mais. Tento me concentrar na minha lista de
compras. Não posso. Vou em direção ao caixa e o procuro. Não o vejo. Vou até o
final do supermercado. Talvez ele pense que desisti. Largo meu carrinho para procurá-lo,
e eis que o vejo sentadinho no banco na frente de um caixa, esperando por mim.
Passo a cesta dele na
esteira, como o primeiro produto, e olho para os lados, desafiadora. Se o
segurança quiser expulsá-lo terá que se ver primeiro comigo. Puxo conversa com
ele enquanto esperamos, e ele me diz onde está o contêiner, fazendo-me lembrar
de que o conheço, que sei onde o contêiner fica, que já vi a família dele ali
quando passei de carro, e levantei meu vidro.